«Já agora que falei de Portugal não quero deixar de mencionar um momento da minha vida que, por si só, justificaria o sentir-me grato ao destino que me empurrou para a Holanda e nela me fez permanecer. Esse momento deu-se quando os holandeses se meteram a salvar o meu país.
Para aqueles que o esqueceram, e para outros que sendo então demasiado jovens disso senão aperceberam, recordarei que graças a uma revolução em Abril de 1974 desapareceu de Portugal um regime de ditadura fascista que tinha durado quarenta e sete anos, e o qual, à semelhança das mais ditaduras, fascistas ou não, protegia os ricos, oprimia os pobres e torturava os oponentes.
Entenda-se que esta versão é simplificada ao extremo e a realidade bem mais cinzenta e complexa. Seja como for, com a revolução a maioria dos fascistas tornaram-se instantaneamente democratas, inclusive os militares, contra quem ainda no dia anterior havia sobejas provas de alegremente terem massacrado e torturado.
Desde essa data, por razões obscuras que têm a ver com a economia, o comércio e outros truques que tornam os ricos mais ricos e os pobres mais desgraçados, Portugal é um país que, em 1981, vive de doações e empréstimos, tendo como principal e dolorosa fonte de receita o dinheiro que lhe remetem os seus emigrantes.
Acontece que, ao dar-se a revolução, os holandeses mostraram ser os mais entusiastas do país em que nasci. Uma alegria. Durante meses e meses os jornais, a rádio, a televisão, não se cansavam de mostrar como pouco a pouco iam nele tomando forças as frágeis raízes da democracia. Assim a modos de uma euforia colectiva onde não havia lugar nem era apreciada uma voz como a minha que, conhecendo melhor o país, a sua história, a sua sociedade, as suas castas, advertia contra o ludíbrio dos dirigentes passados, presentes e in spe.
Porque os holandeses têm essa outra qualidade muito sua: curvam-se obedientes e atentos ao que lhe diz o perito, mas apenas quando o perito sai do mesmo solo e lhes pertence. Os restantes, por mais competentes e argutos, são olhados com a desconfiança que se reserva aos produtos sem selo de garantia.
Entusiasmados e eufóricos, pois, os holandeses meteram-se em grande número a apadrinhar a minha pátria, ansiosos por ver instalados nela líderes que a sua simpatia achava mais sérios, mais competentes, sem se importar com o facto de que ninguém esperava esses líderes, que eles só existiam à custa da muita propaganda que deles era feita com auxílio dos dinheiros mais variados.
Essa é também outra e curiosa idiossincrasia holandesa: a de saber sempre o caminho certo, a solução mais justa e segura.
Quando em Portugal foi permitido, por quem realmente detinha o poder, que os comunistas assumissem durante meses uma aparência de predominância - inteligente medida que lhes permitia salvar a face e aos seus adversários manter nas décadas futuras o medo de um povo simples, que então ainda imaginava os comunistas a estripar crianças à faca - os holandeses, ingénuos e um bocadinho ridículos no seu messianismo, saíram à rua com uns cartazes onde lia Houndt Portugal Vrij (Mantenha Portugal Livre).
Como é de uso em tais ocasiões, as personalidades importantes assinaram listas de adesão, cada um contribui com o seu florim para os peditórios, e meses mais tarde Portugal tinha de facto um governo socialista a garantir as liberdades, a moralidade, o progresso, e fazendo a promessa de realizar uma coisa vaga que se chama "O socialismo com face humana".
Não seria verdadeiro nem justo atribuir apenas á acção dos líderes socialistas portugueses o retorno de Portugal à corrupção, à ineficiência, ao desleixo, ao nepotismo, mas é indubitável que eles contribuíram em larga escala para tudo isso, ajudados moral e materialmente pelos correligionários holandeses e alemães.
Outro corolário da inépcia governamental desses líderes foi acelerar o retorno das forças de direita, tornando Portugal no que é hoje (1981), o país mais pobre da Europa, com um número oficial de seiscentos mil desempregados numa população de nove milhões, as suas ruas e praças cheias de mendigos, esfomeados, doentes, crianças abandonadas, todos a estender a mão à caridade.
Os holandeses, constantando o descalabro dos seus protegidos, desinteressaram-se desde então do meu país como garotos que se aborrecem de um brinquedo. Aqueles a quem tenho apontado essa peculiar ligeireza do comportamento e dos sentimentos, acham-me isensato, desagradecido, até um bocadinho estúpido. E com condescendência enumeram os argumentos que segundo eles lhes dão razão.
Para começar eu vivo aqui, agasalhado, confortável, com salário e seguros, razão número um para não me afligir nem agitar tanto. Em Portugal, acrescentam depois, as liberdades fundamentais estão asseguradas. Além disso é um país historicamente pobre (!). E em matéria de auxílio e interesse estou totalmente errado. A prova? Eles continuam a ir lá de férias, acrescentando com um sorriso malicioso para que eu compreenda: é baratinho.»
Breve excerto de "Com os holandeses". Uma história do 25 de Abril.
Agora, não resisto a colocar parte, repito apenas parte, do final deste livro de J. Rentes de Carvalho para que aqui assim não surja tão desgarrada a pequena história sobre o 25 Abril de 1974.E também para que se possa intuir um pouco melhor da essência do livro e seu autor e, se me permitem, a estranha : ) empatia que com ele criei. Quer pela parte portuguesa, quer pela holandesa. E que se diga que a minha saudade pela holanda vem de quando tinha 8 anitos (tenho 37 ) e uma tia querida para cá emigrou... Ora aqui fica o apontamento:
«Existe na língua portuguesa uma palavra, "saudade", estranha, intraduzível, que designa a recordação nostálgica de pessoas, terras, coisas e sentimentos distantes ou passados, e o desejo de tudo reviver. Essa é mais ou menos a definição que dela dão os dicionários. Porém, o sentimento da saudade, ao que dizem exclusivamente português, é mais complexo do que a explicação sumária dada pelos filólogos, chegando a abranger as nostalgias hipotéticas e impossíveis, fazendo até ressentir dolorosamente ausências e perdas irreais.
Parece complicado, mas na realidade não é. Alguns estrangeiros que visitam Portugal, ao deixar que depois de um dia de sol o vinho lhes amacie a alma e o coração, quando ouvem pela primeira vez a melodia dolente do fado ressentem um baque estranho, indefenível, que lhes enche os olhos de lágrimas.
Esse é o primeiro passo. A saudade aparece logo a seguir, e quem a ela se entrega só com esforço retorna à normalidade. Os portugueses, que recebem esse baque à nascença, vêem a sua vida regida por esse estranho sentimento, chegando alguns ao extremo de sentir saudade da saudade, o que lhes ocasiona mudanças repentinas de humor, fazendo-os passar sem aviso da alegria intensa à melancolia profunda. Outros, igualmente complicados, não podem evitar sofrer já hoje da saudade que só no futuro deveriam sentir.
A essa última categoria pertenço eu. E assim me verão palmilhar as ruas de Amsterdam sem razão nem destino, envolto pela turba que passa, ou meter pelos atalhos e as estradas da província, parando nos molhes, subindo aos diques, caminhando longamente pelas praias e pelos bosques. A temer o momento em que, longe da Holanda, ela se torne para mim uma saudade.»
Mariza - Oxalá
Para aqueles que o esqueceram, e para outros que sendo então demasiado jovens disso senão aperceberam, recordarei que graças a uma revolução em Abril de 1974 desapareceu de Portugal um regime de ditadura fascista que tinha durado quarenta e sete anos, e o qual, à semelhança das mais ditaduras, fascistas ou não, protegia os ricos, oprimia os pobres e torturava os oponentes.
Entenda-se que esta versão é simplificada ao extremo e a realidade bem mais cinzenta e complexa. Seja como for, com a revolução a maioria dos fascistas tornaram-se instantaneamente democratas, inclusive os militares, contra quem ainda no dia anterior havia sobejas provas de alegremente terem massacrado e torturado.
Desde essa data, por razões obscuras que têm a ver com a economia, o comércio e outros truques que tornam os ricos mais ricos e os pobres mais desgraçados, Portugal é um país que, em 1981, vive de doações e empréstimos, tendo como principal e dolorosa fonte de receita o dinheiro que lhe remetem os seus emigrantes.
Acontece que, ao dar-se a revolução, os holandeses mostraram ser os mais entusiastas do país em que nasci. Uma alegria. Durante meses e meses os jornais, a rádio, a televisão, não se cansavam de mostrar como pouco a pouco iam nele tomando forças as frágeis raízes da democracia. Assim a modos de uma euforia colectiva onde não havia lugar nem era apreciada uma voz como a minha que, conhecendo melhor o país, a sua história, a sua sociedade, as suas castas, advertia contra o ludíbrio dos dirigentes passados, presentes e in spe.
Porque os holandeses têm essa outra qualidade muito sua: curvam-se obedientes e atentos ao que lhe diz o perito, mas apenas quando o perito sai do mesmo solo e lhes pertence. Os restantes, por mais competentes e argutos, são olhados com a desconfiança que se reserva aos produtos sem selo de garantia.
Entusiasmados e eufóricos, pois, os holandeses meteram-se em grande número a apadrinhar a minha pátria, ansiosos por ver instalados nela líderes que a sua simpatia achava mais sérios, mais competentes, sem se importar com o facto de que ninguém esperava esses líderes, que eles só existiam à custa da muita propaganda que deles era feita com auxílio dos dinheiros mais variados.
Essa é também outra e curiosa idiossincrasia holandesa: a de saber sempre o caminho certo, a solução mais justa e segura.
Quando em Portugal foi permitido, por quem realmente detinha o poder, que os comunistas assumissem durante meses uma aparência de predominância - inteligente medida que lhes permitia salvar a face e aos seus adversários manter nas décadas futuras o medo de um povo simples, que então ainda imaginava os comunistas a estripar crianças à faca - os holandeses, ingénuos e um bocadinho ridículos no seu messianismo, saíram à rua com uns cartazes onde lia Houndt Portugal Vrij (Mantenha Portugal Livre).
Como é de uso em tais ocasiões, as personalidades importantes assinaram listas de adesão, cada um contribui com o seu florim para os peditórios, e meses mais tarde Portugal tinha de facto um governo socialista a garantir as liberdades, a moralidade, o progresso, e fazendo a promessa de realizar uma coisa vaga que se chama "O socialismo com face humana".
Não seria verdadeiro nem justo atribuir apenas á acção dos líderes socialistas portugueses o retorno de Portugal à corrupção, à ineficiência, ao desleixo, ao nepotismo, mas é indubitável que eles contribuíram em larga escala para tudo isso, ajudados moral e materialmente pelos correligionários holandeses e alemães.
Outro corolário da inépcia governamental desses líderes foi acelerar o retorno das forças de direita, tornando Portugal no que é hoje (1981), o país mais pobre da Europa, com um número oficial de seiscentos mil desempregados numa população de nove milhões, as suas ruas e praças cheias de mendigos, esfomeados, doentes, crianças abandonadas, todos a estender a mão à caridade.
Os holandeses, constantando o descalabro dos seus protegidos, desinteressaram-se desde então do meu país como garotos que se aborrecem de um brinquedo. Aqueles a quem tenho apontado essa peculiar ligeireza do comportamento e dos sentimentos, acham-me isensato, desagradecido, até um bocadinho estúpido. E com condescendência enumeram os argumentos que segundo eles lhes dão razão.
Para começar eu vivo aqui, agasalhado, confortável, com salário e seguros, razão número um para não me afligir nem agitar tanto. Em Portugal, acrescentam depois, as liberdades fundamentais estão asseguradas. Além disso é um país historicamente pobre (!). E em matéria de auxílio e interesse estou totalmente errado. A prova? Eles continuam a ir lá de férias, acrescentando com um sorriso malicioso para que eu compreenda: é baratinho.»
Breve excerto de "Com os holandeses". Uma história do 25 de Abril.
Agora, não resisto a colocar parte, repito apenas parte, do final deste livro de J. Rentes de Carvalho para que aqui assim não surja tão desgarrada a pequena história sobre o 25 Abril de 1974.E também para que se possa intuir um pouco melhor da essência do livro e seu autor e, se me permitem, a estranha : ) empatia que com ele criei. Quer pela parte portuguesa, quer pela holandesa. E que se diga que a minha saudade pela holanda vem de quando tinha 8 anitos (tenho 37 ) e uma tia querida para cá emigrou... Ora aqui fica o apontamento:
«Existe na língua portuguesa uma palavra, "saudade", estranha, intraduzível, que designa a recordação nostálgica de pessoas, terras, coisas e sentimentos distantes ou passados, e o desejo de tudo reviver. Essa é mais ou menos a definição que dela dão os dicionários. Porém, o sentimento da saudade, ao que dizem exclusivamente português, é mais complexo do que a explicação sumária dada pelos filólogos, chegando a abranger as nostalgias hipotéticas e impossíveis, fazendo até ressentir dolorosamente ausências e perdas irreais.
Parece complicado, mas na realidade não é. Alguns estrangeiros que visitam Portugal, ao deixar que depois de um dia de sol o vinho lhes amacie a alma e o coração, quando ouvem pela primeira vez a melodia dolente do fado ressentem um baque estranho, indefenível, que lhes enche os olhos de lágrimas.
Esse é o primeiro passo. A saudade aparece logo a seguir, e quem a ela se entrega só com esforço retorna à normalidade. Os portugueses, que recebem esse baque à nascença, vêem a sua vida regida por esse estranho sentimento, chegando alguns ao extremo de sentir saudade da saudade, o que lhes ocasiona mudanças repentinas de humor, fazendo-os passar sem aviso da alegria intensa à melancolia profunda. Outros, igualmente complicados, não podem evitar sofrer já hoje da saudade que só no futuro deveriam sentir.
A essa última categoria pertenço eu. E assim me verão palmilhar as ruas de Amsterdam sem razão nem destino, envolto pela turba que passa, ou meter pelos atalhos e as estradas da província, parando nos molhes, subindo aos diques, caminhando longamente pelas praias e pelos bosques. A temer o momento em que, longe da Holanda, ela se torne para mim uma saudade.»
Mariza - Oxalá
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